domingo, 16 de fevereiro de 2014

A QUEM SERVE A AUSTERIDADE: RETRATO ECONÓMICO E SOCIAL DO PORTUGAL DE HOJE E OS IMPACTOS DA INTEGRAÇÃO CAPITALISTA EUROPEIA



O retrato económico e social do Portugal de 2013 mostra de forma clara as consequências da política de austeridade que tem vindo a ser seguida e a quem serve.

Fazendo recurso às últimas previsões macroeconómicas da Comissão Europeia (Outono 2013, AMECO) e às estimativas que apresentam para o ano de 2013, podemos perceber a forte degradação da situação económica e social nacional. Se tivermos em conta a evolução das últimas décadas dos principais indicadores económicos, podemos perceber como esta se acentuou depois do estabelecimento do Euro e agora, com a aplicação do programa de «ajustamento estrutural», o denominado PAEF.

Evolução dos principais indicadores económicos

Em 2013, o produto encontrava-se ao nível do ano 2000, culminado uma recessão continuada de 3 anos. Desde 2011, o produto teve uma contracção de 7,7 mil milhões de euros, o que implicou uma redução anual de quase 564 euros no produto por habitante. Em paridades de poder de compra, isto implicou um recuo de 16 anos na nossa convergência real com a União Europeia. 

As taxas  de crescimento do produto têm vindo a desacelerar de década para década (Gráfico 1), acentuando-se no pós-euro (2001-2010) em que estagnaram, não chegando, em termos médios anuais, a 0,7%, para contraírem 1,4% após 2011, já incluindo aqui o cumprimento das previsões incluídas no Orçamento de Estado para 2014.
Isto significou, que o ritmo da convergência de Portugal com os países que compunham a União Europeia a quando da nossa adesão, também tem vindo a desacelerar, entrando-se num processo de divergência económica no pós-euro.

Por outro lado, a evolução do Rendimento Nacional acompanhou as mesmas tendências do produto, de forma ainda mais acentuada desde os anos 90 do século passado, ou seja, no pós-Maastricht e com o processo de consolidação do mercado interno europeu. Este facto é por si também demonstrativo do agravamento da nossa dependência externa.

A evolução do produto fica marcada com a forte contracção do investimento, cujos valores em 2013 se encontravam ao nível de 1987, um recuo de 26 anos. Desde o Euro, o investimento privado teve uma redução de 17,4 mil milhões de euros. Em 2013, o investimento representava em valores absolutos quase metade daquele que se realizou em 2001.

Em paralelo, o volume de emprego em 2013 também estava ao nível de 1987, num contexto em que as taxas de crescimento do emprego, em termos médios anuais, na década de 70 até à de 90 do século passado foram sempre inferiores a 1% e, desde o Euro, se tem verificado uma destruição progressiva de postos de trabalho (Gráfico 2).

Desde o Euro, destruíram-se quase 680 mil postos de trabalho. Desde 2011, destruíram-se quase 390 mil postos de trabalho.


Esta evolução do emprego, traduziu-se num crescimento da taxa de desemprego, que atingiu em 2013 o seu nível mais elevado de sempre (17,4%). O número de desempregados quase quadruplicou desde o Euro.

Havendo somente dados referentes a 2012, a produção industrial encontrava-se ao nível de 1989, um recuo de 23 anos, com as taxas de crescimento, em termos médios anuais, a desacelerarem desde a década de 70 do século passado, passando a um decrescimento progressivo desde o Euro (Gráfico 3). Desde então a produção industrial teve uma redução cumulativa de mais de 21%. Mais de 7% desde 2011.
 

Isto quer dizer que o processo de desindustrialização do país tem vindo a agravar-se, tornando evidentes as consequências do perfil de especialização do nosso modelo produtivo, assente em sectores de baixo valor acrescentado e, consequentemente, de baixos salários. Um modelo assente na reexportação, inserido nas cadeias de subcontratação das grandes empresas multinacionais que operam no mercado interno europeu.

Reflexo da quebra de produção industrial, foi a evolução simétrica do crescimento do défice da balança de bens, o que contribuiu de forma determinante para o agravamento do défice da balança corrente e, subsequentemente,  para o crescimento do nosso endividamento externo e para a venda de activos nacionais, culminando com cada vez maiores transferências de parcelas do nosso rendimento nacional para o estrangeiro.

Face ao pico de 2008, o défice da balança de bens era 12 vezes superior ao existente no momento da adesão e, em 2013, ainda era 2 vezes superior. A melhoria do saldo da balança de bens e da balança corrente verificado sobretudo desde 2011, não resulta de um aumento da produção nacional, nomeadamente da produção industrial. Resulta, sim, de uma política de empobrecimento forçado da grande a maioria dos portugueses.

Política traduzida numa redução acentuada do  rendimento disponível, por via não só do aumento brutal da carga fiscal, como por cortes directos nos salários, pensões, reformas e outras prestações sociais.
A título de exemplo, o volume da compensação salarial ao nível nacional, encontrava-se em 2013 ao nível de 2005 e, no caso dos trabalhadores da função pública, ao nível de 2000.

Este empobrecimento é visível na contração do consumo privado, de 8 mil milhões face a 2011. Em valores absolutos, o consumo privado em 2013 estava ao nível do ano 2000 e as taxas de crescimento também têm vindo a desacelerar de década para década, com um forte abrandamento na era pós-Euro (Gráfico 4).


E quanto aos tão proclamados objectivos de consolidação orçamental, de redução do défice e da dívida pública? Em 2013, o valor absoluto e em % do PIB do défice vai ser superior ao que existia em 2011, após 2 anos de austeridade. Isto mesmo tendo em conta as medidas extraordinárias tomadas e irrepetíveis para tentar reduzir o défice para outros patamares durante o ano de 2013, sem os quais teríamos visto cumpridas as previsões iniciais da Comissão Europeia, de um défice de 9,8 mil milhões de euros (5,9% do PIB).

Por outro lado,  o valor dos juros da dívida pública está ao nível mais elevado de sempre em 2013 (7,2 mil milhões de euros) e prevê-se que continue a aumentar nos próximos anos. Sem os juros da dívida, teríamos um superavit orçamental em 2014, tendo em conta as previsões do Orçamento de Estado (Gráfico 5).

A dívida pública também está ao nível mais elevado de sempre e aumentou 14,1% desde 2011, ou seja, mais 26,1 mil milhões de euros, atingido os 127,8% do PIB em 2013, prevendo-se que continue a aumentar em valores absolutos.

Mas a verdadeira questão é que desde 1997, o propósito da consolidação orçamental tem sido o grande objectivo, tendo-se atingido valores próximos dos 3% do PIB impostos pelo Pacto de Estabilidade em 1999, 2002 e 2007 e cada novo governo acabou o seu mandato com mais défice e mais dívida que o anterior.


O processo de consolidação orçamental não pode ser sustentável se não existir criação da riqueza e sua justa repartição. A austeridade será sempre acompanhada de estagnação e recessão económica, com consequências endémicas no crescimento continuado do desemprego estrutural, alimentando os défices público e externo.

O que significa que sem alterar o perfil do modelo produtivo nacional, não se poderá por termo ao ciclo vicioso de dependência em Portugal se encontra. Sendo certo também, que sem recuperar elementos essenciais de soberania económica, nomeadamente ao nível da moeda, este modelo continuará a ser imposto via Bruxelas, ao serviço do grande capital multinacional que opera no mercado interno europeu.

Pois esta mesma «política de austeridade» faz parte da matriz dos Tratados da União Europeia, do Euro e do Banco Central Europeu, da Estratégia de Lisboa/2020, do Semestre Europeu, do «Pacto para o Euro mais» e do Tratado Orçamental e do Pacto de Estabilidade. O que significa que com mais ou menos Troika, a austeridade vai continuar.

A quem serve esta política? O aumento da exploração do trabalho

Mas face aos resultados é de perguntar se estamos perante um falhanço de políticas e dos agentes que a executam? A resposta a esta pergunta implica perceber o real objectivo das políticas que estão a ser executadas. Resposta que é indissociável da crise estrutural em que o sistema capitalista mundial se encontra, em particular na zona da integração capitalista europeia, onde Portugal se encontra inserido. Da compreensão dos motivos da crise de sobre-acumulação de capital sobre todas as formas que o sistema atravessa e a necessidade que tem de restaurar as condições de rentabilidade do capital, as taxas de lucro, que apesar de toda a destruição de capital que se tem verificado, teimam a manter a sua tendência de declínio, com impactos no processo de acumulação de capital.

O capitalismo responde de todas formas. Destruído uma massa das forças produtivas, para tentar restaurar as condições de rentabilidade do capital remanescente, cujo resultado mais visível é o desemprego, o crescimento do exército de reserva.

Expandindo mercados, como foi o caso dos sucessivos alargamentos da União Europeia. Explorando novos mercados, como é o caso dos mercados e serviços públicos, cujo processo de privatização é uma forma dos integrar em lógicas de rentabilização privadas.

Baixando as taxas de refinanciamento do capital, por via do abaixamento das taxas de juros (grande objectivo da União Económica e Monetária) ou por via da utilização de dinheiros públicos, como é exemplo, a inserção dos sistemas nacionais de pensões no mercado de capitais ou a despesa fiscal existente ao nível orçamental. Mas sobretudo, como não podia deixar de ser, pela intensificação da exploração do trabalho.

O objectivo confluente de todas estas políticas e instrumentos, emanadas das instâncias internacionais e europeias, um aspecto essencial da concertação capitalista, é a redução dos custos unitários do trabalho, ou seja, garantir a transferência dos ganhos de produtividade do trabalho para o capital. E aqui as políticas «não falharam», têm vindo a cumprir o seu objectivo estratégico.

A outra variável que em 2013 estava ao nível mais elevado de sempre era os lucros líquidos, que aumentaram 4 mil milhões de euros face a 2011. Prevê-se que aumentem  mais 3,4 mil milhões de euros em 2014 e continuem a aumentar em 2015. Desde o Euro aumentaram 40%, em termos cumulativos.

Na outra «face da moeda», em 2013, o peso dos salários no produto estava ao nível de 1990, tendo o seu peso tido uma redução de 2,5 p.p., indicativo de um dos maiores aumentos da taxa de exploração desde o 25 de Abril. Em 2014, prevê-se que o peso dos salários no produto seja de 53,6%, ou seja, um dos níveis mais baixos de sempre. Prevê-se que salários reais sofram uma redução de 2,8% até 2015.

Em paralelo, desde 2011 os custos unitários do trabalho reais tiveram uma redução superior a 4 p.p. (índice 100). Em 2014, prevê-se que os custos unitários do trabalho reais tenham uma nova redução de 3%, ou seja, continua a transferência dos ganhos de produtividade do trabalho para o capital, que é o mesmo que dizer que continua a acentuar-se o  processo de expropriação do trabalho. Em 2013, os custos unitários do trabalho reais estavam ao nível de 1990.

Isto num contexto, em que a produtividade do trabalho encontrava-se, em 2013, a um dos níveis mais elevados de sempre (33.261 euros por pessoa empregada) e, face à adesão de Portugal à então CEE, cada trabalhador produz quase mais 8 euros por hora trabalhada.

Se analisarmos estas mesmas variáveis no tempo, em termos médios anuais, verificamos que na primeira década do Euro, os lucros líquidos cresceram a um ritmo 3,5 vezes superior ao dos salários reais. Desde 2011 e, se incorporarmos as previsões do Orçamento de Estado para 2014, estes crescerão a um ritmo 8 vezes superior ao dos salários, que terão uma redução (Gráfico 6).

Resultado? Um aumento de 2 p.p. médio anual na transferência ganhos da produtividade. Acentua-se a exploração do trabalho.


Vê-se assim quem ganha e quem perde com esta política. Vê-se quem é servido e quem tem de fazer sacrifícios. Vê-se que esta política tem um propósito de classe, do qual a União Europeia é um instrumento fundamental. Um instrumento não reformável, criado e desenvolvido pelo grande capital, que lança amarras que condicionam o nosso desenvolvimento económico e social e o aproveitamento cabal dos nossos recursos endógenos.

Por isso, não existem saídas no actual quadro que não passem por uma ruptura com as políticas vigentes, o que implica uma ruptura com o processo de integração capitalista europeia. Sem o retorno dos instrumentos de política económica, monetária, orçamental e cambial e sem pôr no domínio público os sectores estratégicos que permitam alavancarem o desenvolvimento  económico e social do país, não teremos os instrumentos para fazer as escolhas necessárias para construir o Portugal que queremos e precisamos, que Abril começou. Esta tem de ser, por isso, uma prioridade da luta dos trabalhadores e do povo.

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